zé-ninguém

Prego a fundo, dando o máximo, estourando-se no caminho entre aplausos do público e os uivos que incentivam a combustão. Mais pressão e exaustão para alimentar um fogo que muito agrada aos próximos enquanto tudo em ti queima.

  • Porque eu comecei às seis da manhã e fiquei até de noite. Farto-me de dar no duro e trabalhar como um escravo. Fiz isto, isto e aquilo. E vocês, seus inúteis, aqui todo o dia a brincar. — Queixava-se o Zé vangloriando-se para os filhos, pouco antes de morrer de paragem cardíaca e deixando-os assim órfãos em tenra idade.

Diariamente, podemos escutar alguém vangloriar-se no meio de lamúrias, enaltecendo o esforço, gabando o sacrifício, pavoneando o seu sofrimento. Movendo comparações e argumentando razões para repartições de mérito a quem vale mais e a quem vale menos.

O mestre apontou a lua e os seguidores regozijaram-se com o dedo.

Independentemente da doutrina, vemos muitos louvando o mesmo cântico: a virtude do sacrifício, apontando o mártir que carrega a cruz, morrendo crucificado. Mesmo esse sublinhou “que eu carregue para que outros não tenham de carregar” e “perdoa-lhes pai que eles não são os lápis mais afiados da caixa” diria. O mestre apontou a lua e os seguidores regozijaram-se com o dedo.

Exaltar o sofrimento e o esforço como virtude não é somente um equívoco, é negligente e tremendamente perigoso.

“Sacrifício” deriva do termo sacro-ofício, significando simplesmente “trabalho sagrado”. Ao longo de séculos de história o seu significado foi totalmente desviado e desvirtuado rumo a algo tremendamente medíocre. Exaltar o sofrimento e o esforço como virtude não é somente um equívoco, é negligente e tremendamente perigoso, sendo um dos principais combustíveis para alimentar guerras por partilhas, conflitos de valor, faltas de autoestima, direitos por usucapião. Um sem fim de conflitos, doenças e outros desvios, movidos por “heróis” cujo maior mérito é servirem de carne para canhão, alimentando um movimento de contínua guerra, que preenche hospitais.

Criei a história abaixo para os meus alunos, que apresentassem sinais da Síndrome da Madre Teresa, vivendo na sombra da idolatração dos mártires. No entanto, esta é uma história que toca a todos e que requer especial reflexão.

Vieram cem pessoas e o Zé tratava os cem.
Vieram mais cem e o Zé não dizia que não a ninguém e tratava os cem.
Vieram mais cem e o Zé estava incapacitado, tendo ajudado duzentas pessoas e mais ninguém.
Fizeram uma estátua ao Zé e glorificaram-no como um exemplo de humanidade e herói.
O neto do Zé seguiu o percurso do avô.
Vieram cem e tratou os cem.
Vieram mais cem e tratou quarenta recusando sessenta.
Vieram mais cem e tratou um recusando noventa e nove.
Vieram mais cem e tratou noventa e nove recusando um.
Vieram cem e tratou dez, adiou trinta e recusou sessenta.
Vieram mais cem e tratou oitenta e disse que não a vinte.
Vieram mais cem e recusou os cem.
Vieram mais cem e aceitou dois.
Vieram mais cem e disse que sim a trinta.
Vieram mais cem e disse que não a noventa e sete.
Assim continuando ao longo da vida ajudando milhares de pessoas e ofendendo outros milhares. O neto do Zé nunca teve uma estátua erigida, ninguém conhece o seu nome, referindo-se a este como o Zé Ninguém.

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